Monday, March 31, 2008

Sindicância Pessoal




Me deixa distante
Quando diluir a última droga no sangue
Quando passar pelos mesmos asfaltos
no caminho de volta pra casa
Prender o choro, reconhecer a exaustão
Reverência ao saudossismo, que vem com chuva molhando a varanda


Me deixa quieto
Mudo e miúdo para todos os efeitos
Paralítico e estático
Com medo das feias feridas, da dor latente no peito
Luxúria em carne viva, Preguiça doente e selvagem
Pecado fervente nos meus olhares, nos meus arqueios


Me deixa dançar
Transpirar, deixar o corpo gasto
Ritmia e descontrole, o prazer pela fadiga
Respiração ofegante, delirante
O fascínio pelo movimento da pele em gestos largos


Me deixa cantar
Pela falta de asas maiores
Pela falta do voar
Externir meus sentidos
Gritar a todos os surdos e a todos residentes na dor
Meu protesto sem cor nem som
Propagar não mais que meio sorriso



Me manter em pé, frio e operante
pros desvaneios errantes
de uma cabeça que clama pela benção da ignorância inconstante.


Friday, March 07, 2008

Dona Glória das Acácias



Depois de cumprimentar o último desconhecido ali presente,de acalantar e ser acalantada por figuras estranhas, Dona Glorinha sentou-se no banco de pedra ao lado de fora da câmara do velório.

Contornou com as mãos os joelhos doídos, sentiu a textura macia de seu vestinho preto de algodão. Reconfortou-se e abraçou os próprios ombros cobrindo o peito; era necessário controlar os desvaneios e prantos sem fim. A senhora já tinha alcançado essa conquista, não queria perdê-la para a habitual fraqueza de seu corpo frágil.

Um final de tarde especialmente frio e tenebroso. Em que o olho por todo o campo fúnebre do cemitério, seus pés afundaram e sua cabeça rodou por outros planos.

Engoliu o último lamento que um dia choraria por seu neto.

Não se permitiu olhar para o corpo do jovem novamente. Depois do sepultamento, ancorou-se no seu guarda-chuva e foi arrastando os pés até o seu Fusca.

...

De chapéu e luvas de tecido negro ainda vestidas, Dona Glorinha desceu do automóvel exatos trinta minutos desde sua saída do enterro.

Estava no litoral,distante dos muros de concreto e dos parentes, de frente pro mar.
Ali do lado direito da costa estava a construção e habitação do falecido: um casebre de madeira grossa, palafitado sobre a areia fina.

Sentiu um pesar por não poder avistar as ondas, já estava muito escuro aquela hora. Aguçou os ouvidos e pôde escutar as águas quebrando sob os arrecifes ali dsitantes.
Se julgaria louca ou talvez insensível, mas por uma fração de instante, jurou ouvir o canto das sereias. Uma nota sonôra, triste e melancólica, por a perda de um amigo querido...

Tudo parecia atrapalhar a velha senhora: o vento atritava seu corpo doentio a caminho da edificação, seus pés em passadas curtas por causa da areia, esta mesma que feria seus olhos. Amaldiçoou a ventania por ter feito perder o chapéu, que se perdeu no horizonte.

Finalmente chegara a porta talhada da casa.

Adentrou o recinto e não houve surpresa com a visão: metódico, o ex-morador da casa organizava suas miudezas de forma categórica e zelosa. Desda a sala até a cozinha, tudo limpo e guardado no seu devido espaço. O casebre era repleto de estrelas penduradas e ornamentadas, gatos selvagens que há tempos não eram alimentados, circundavam sem parar o piso de madeira como se procurassem algo perdido...

As grandes janelas de vidro fechadas não deixavam passar a maresia e a ventania da praia, impreguinando a morada com um quase insuportável cheiro de flores do campo. Apenas resquísios do perfume do falecido neto.

Quando terminou a vereficação de todos os cômodos, a avó desamparada fez questão de subir mais uma vez ao sótão. Subiu novamente as escadas de carvalho e após abrir a porta, avistou o conhecido baú antigo que ela mesma havia dado ao neto no dia de seu nascimento.

Demorou a se recompor da nostálgica viagem emotiva que essa imagem a fez passar. De joelhos(doendo como se queimados em brasa), destrancou o cadeado enferrujado em forma de concha, subiu a tampa do baú com uma surpreendente força e avidez, e retirou o conteúdo do mesmo.

Um caderninho sujo e parcialmente rasgado, com todas as folhas em branco, mnos uma: a primeira página completamente redigida. No topo se lia o título:

"O Conto do Mar"

O texto; que falava entre outras coisas sobre o amor, sobre a maresia, as amizades e os cortejos inesquecíveis que seu neto outrora havia recebido, foi guardado pra sempre pela avó desde aquele fatídico dia.


...

Dona Glórinha levou o legado do último dos Arduennas para longe do seu casebre com cheiro de azaléia. Levou pra sua triste e idosa vida, afim de sempre ter por perto de si palavras que a levassem pra perto do mar, das estrelas e das sereias.
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